Solenidade de Cristo Rei do Universo: Jo 18,33-37 – O rei da mentira x A verdade do Rei

 

A hodierna Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do universo, muito bem situada pela reforma litúrgica do Vaticano II no encerramento do ciclo dominical do ano litúrgico, evidencia ainda mais a fé que professamos a cada Eucaristia: Cristo como centro e Senhor da história (1ª leitura); Nele toda a criação e a humanidade se encontram e encontram a sua razão de ser, pois Ele é o Alfa e o Ômega (2ª leitura). Apesar de não se identificar com nenhum reinado deste mundo, Ele é verdadeiro Rei, pois sua autoridade está fundamentada na verdade: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade”, e não no poder garantido pela mentira e sustentado por ideologias falsificadoras da realidade. Verdade que não é simplesmente a coincidência entre ideias e realidades que se correspondem superficialmente. Mas a verdade é a sua Pessoa comprometida com a vida, pela qual aceita morrer, para viver e reinar eternamente.
 
A perícope desta Solenidade é uma das portas principais para compreender toda a narração joanina da paixão, morte de ressurreição de Jesus (Jo 18-20). Estamos diante de um dos maiores dramas da humanidade em toda a sua história: reconhecer a verdade e morrer por ela, para que a vida reine, ou abraçar a mentira e condenar à morte uma multidão de inocentes. Contudo, apesar de o império da mentira parecer vencedor, o reino da verdade já foi estabelecido. Não há o que duvidar, pois a dúvida engendra derrotados, enquanto que a fé na verdade dá à luz os vitoriosos.
Diante de Jesus, que é a Verdade (Jo 14,6), a mentira é desmascarada e anuncia-se, desta forma, a sua derrota: “Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz… Mas quem age segundo a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que as suas obras são feitas em Deus” (Jo 3,19-21).
 
Pilatos, ao interrogar Jesus sobre as acusações feitas contra Ele, torna-se o porta-voz de três mentiras denunciadas ao longo da narração. Mentiras não apenas de caráter pessoal, mas de abrangência universal. A história humana está marcada por uma constante ambiguidade, vive a tensão entre optar pela mentira que escraviza ou reconhecer e assumir a verdade que liberta. 
Primeira mentiraÉs o rei dos Judeus? Esta pergunta indica uma das grandes manobras ideológicas de todos os tempos para distorcer sutilmente a verdade, isto é, induzir o outro a assumir a mentira com suas próprias palavras e atitudes. A guerra semântica dos nossos dias é o terreno mais propício para promover a confusão e, consequentemente, fazer passar a mentira como verdade absoluta. Semelhante situação se deu quando a serpente no paraíso quis induzir Eva a afirmar ser Palavra de Deus, o que na verdade, era uma mentira sua. Para convencer a mulher, introduziu sua pergunta com as palavras: “Então Deus disse: Vós não podeis comer do fruto das árvores…” (Gn 3,1).  Num primeiro momento, Eva reage e corrige a serpente, esclarecendo o que, de fato, Deus lhes havia dito (Gn 2,17). Porém, não perseverou na verdade, apenas reconheceu-a. Na investida seguinte, deixou-se convencer pela mentira do mais astuto e caiu na armadilha. Jesus, ao ser tentado no deserto, também foi induzido pelo diabo a agir conforme a “verdade” do tentador, que afirmando ser Jesus “Filho de Deus”, exigia dele uma falsa prova disso, pois negaria a verdade da sua missão de Messias sofredor, transformando-se em messias triunfalista, sem cruz e sem morte. 
Diante da pergunta de Pilatos, Jesus não se deixa enganar, e declara: “Tu dizes: eu sou rei”. Em outras palavras: “quem está dizendo ser rei aqui és tu” (o grego hoti pode ser traduzido por “dois pontos”, tornando assim uma declaração direta). As atitudes de Pilatos confirmam a verdade desta palavra de Jesus. É ele quem está assumindo as prerrogativas de rei (interrogar, julgar, anistiar, condenar), já que, na qualidade de governador romano, era o representante do imperador. Por outro lado, o próprio povo o reconhece também como rei, pois exige que julgue e condene Jesus. E se não o fizer, declarar-se-á inimigo do Rei César (Jo 19,12). Consequentemente, respondendo ao pedido do povo, Pilatos assume ser ele mesmo o rei dos judeus. O povo, por sua vez, faz a grande declaração de sua apostasia: “Não temos outro rei senão César” (Jo 19,15) Portanto, não é Jesus quem reivindica para si o título de rei, pois já havia afirmado que não veio para julgar ou condenar o mundo, mas para salvá-lo (Jo 3,17). 
 
Segunda mentira: “Sou por acaso Judeu?” A distorção falaciosa leva a assumir atitudes de negação diante das consequências do confronto com a verdade. Negar a cumplicidade é a maneira mais irresponsável de isentar-se da culpa. Manobra muito utilizada pelos pretensos reis dos nossos dias. No irromper da verdade, valem-se da estratégia da transferência de culpa para terceiros. Não viram nada, não sabem nada, apenas foram pegos de surpresa. A verdade de Jesus não é manipulada, não se deixa convencer por estratégias eficientes para livrar-se das consequências de sua missão. A identidade e a missão não se contradizem. Não há situação que justifique uma possível incoerência com o intuito de livrar a pele. Já no horto quando os soldados chegaram para prendê-lo, Ele não foge, nem se deixa confundir com outro para escapar à prisão, mas pelo contrário, adianta-se e identifica-se por três vezes: “Sou eu” (Jo 18,5.6.8). Os covardes têm medo da verdade, por isso se camuflam e fogem, enquanto que a verdade dá coragem aos injustiçados tornando-os aptos para o enfrentamento.
  
Terceira mentira: “Nenhuma culpa encontro nele”. Declarar a verdade não significa apenas reconhecê-la teoricamente. Mesmo afirmando ser Jesus inocente, Pilatos não foi suficientemente corajoso para denunciar a mentira das acusações e assumir a verdade. Do ponto de vista oficial, formal, na nossa sociedade muitos dos seus seguimentos, organismos, instituições, estão todos de acordo em relação a grandes urgências e necessidades para o bem comum, mas acabada a reunião, cada um faz o que lhe interessa e convém, em detrimento da verdade proclamada pelos acordos assinados. Pilatos reconhece a verdade, mas não se compromete com ela. Tem medo de pagar o preço pela verdade que se impõe, prefere a mentira para ter garantido o seu lugar na elite dominante, ainda que por pouco tempo, pois o seu sistema apoiado em falsas ideologias não terá outro fim senão o desmoronamento. Dizer que é verdade a inocência de Jesus não era o suficiente para saber o que é verdade. Mas era preciso acolher a palavra libertadora de Jesus, tornando-se discípulo seu. Contudo, não foi capaz de crer naquilo que o Mestre ensinara: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Diante da verdade do Cristo-Rei do Universo, os Pilatos de todos os tempos preferem continuar a ser reis da mentira.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana