Em nosso espaço Memória História, padre Gerson Schmidt resgata textos de estudos histórico-científicos de Mons. Klaus Gamber (1919-1989), onde afirma que “vivemos uma época de desolação litúrgica, que tem suas origens, em último análise, no iluminismo.”
Jackson Erpen – Cidade do Vaticano
No nosso espaço Memória Histórica, 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos continuar a falar sobre Liturgia.
Reforma Litúrgica, Movimento Litúrgico, alguns exageros decorrentes da renovação litúrgica, os dois extremos do pêndulo da liturgia, a importância da formação litúrgica. Não foram poucos os temas referentes à liturgia já abordados neste nosso espaço, pois a liturgia, “é decisiva na vida da Igreja”, como nos explicou recentemente o bispo de Bragança-Miranda (Portugal), Dom José Manuel Cordeiro. E pela sua importância,“tem que ser transversal a todas as disciplinas, a todas as dimensões do saber teológico e filosófico, porque se ela como nós acreditamos e temos como orientação do Concílio Vaticano II deste renovamento e aprofundamento da liturgia que é fonte e o cume de toda a vida da Igreja, é claro que entre a vida e o cume há um grande caminho a fazer, por isto que não é exclusiva, mas é decisiva”.
Mas no programa de hoje, retrocedemos um pouco no tempo. Padre Gerson Schmidt – incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre, e que tem nos acompanhado no percurso de exposição dos documentos conciliares – nos propõe uma reflexão sobre a liturgia “Do Barroco ao Iluminismo¹”:
“Segundo o estudos histórico-científicos de Mons. Klaus Gamber (1919-1989), vivemos uma época de desolação litúrgica, que tem suas origens, em último análise no iluminismo. Como na época do barroco o povo, ainda que vivendo a liturgia oficial em seu interior, não podia participar nela ativamente, desenvolveu novas formas populares de devoção. Estas formas estavam profundamente enraizadas nos costumes religiosos. Ao mesmo tempo que a missa oficial, por sua solenidade, atraía os fiéis, estas novas formas de devoção foram, durante a Contra-Reforma, os pilares do renascimento do catolicismo.
Sem dúvida, não se pode negar uma importante falta desta liturgia barroca, pois os sermões que se pronunciavam tinham pouca profundidade doutrinal; os dogmas centrais da fé eram deixados de lado e, em contrapartida, dava-se especial relevo a verdades periféricas. Houve na época barroca um novo florescimento da vida eclesial, que foi interrompido no século XVIII pelo racionalismo frio do Iluminismo.
Não se fez caso da liturgia tradicional, pensou-se que não correspondia suficientemente com os problemas concretos da época e se exageraram as formas de piedade populares. Este primeiro desmantelamento da liturgia tradicional resultou tanto mais grave quanto mais o poder do Estado tomou partido pelas ideais iluministas. Muitos bispos se contaminaram com o espírito do século chamado das Luzes, embora se possa questionar se de fato possa ter sido uma época de luz.
Em muitos lugares, se suprimiram diversas formas tradicionais da missa, em grande parte pela força bruta que o Estado exerceu, mesmo contra a vontade popular. Nos países do rio Reno(seis países: a Suíça, a Áustria, o Liechtenstein, a Alemanha, a França e os Países Baixos) as missas gregorianas cantadas pelos fiéis durante muitos séculos foram proibidas e substituídas à força pela chamada Missa Maior alemã. Mais tarde, as antigas formas de devoção desgraçadamente não puderam mais ser reanimadas. Na época do Iluminismo, a missa era vista como um meio de formação moral; daí a rejeição do latim como língua litúrgica.
A Igreja, prolongação do braço secular, tinha recebido do Estado a missão de formar o povo, no intuito de suscitar súditos fiéis, de maneira que os padres estavam obrigados a realizar, dos púlpitos, funções que não tinham nada a ver com seu ministério, tais como explicar as leis do Estado ou as ordens da polícia e exortar à obediência. Não faltaram as experiências litúrgicas, sobretudo no relativo à distribuição dos sacramentos. Mas estas inovações não conseguiram se manter durante muito tempo. Assemelham-se enormemente às de nossos tempos, que têm por objeto o homem e seus problemas (sociais).
Assim, por exemplo, Vitus Winter, um dos reformadores da era das Luzes, exige que sejam eliminadas todas as orações “que fazem que o homem tudo espere de Deus e não se sinta independente”. Mais ainda, segundo ele seria necessário suprimir todas as orações que contivessem expressões orientais e bíblicas.
De fato, os novos textos que se compuseram, se caracterizavam por um tom moralizador. Sem sombra de dúvida, pode-se afirmar que as raízes principais da desolação litúrgica atual têm sua origem no Iluminismo.
Muitas das ideias desta época não chegaram a amadurecer até os nossos dias em que vivemos uma nova época das Luzes”.
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¹ Resgate histórico feito por Monsenhor Klaus Gamber, Reforma da Liturgia Romana, disponível em http://www.unavocesevilla.info/reformaliturgia.pdf, adaptado em linguagem radiofônica.