III Domingo do Tempo Comum: Lc 1,1-4 e 4,14-21 – Evangelho: Boa notícia de esperança

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
 
Estamos praticamente iniciando o Tempo Comum (Ano C), cuja leitura do evangelho dominical é predominantemente de São Lucas. Por isso, muito oportuno o trecho escolhido para hoje que une duas perícopes “independentes” que nos apresentam respectivamente: o resumo do Evangelho escrito, fruto da diligência do seu autor material: “Também eu decidi escrever…” (1,1-4), e uma introdução-síntese de toda a missão de Jesus, isto é, o realizador do Evangelho: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir” (4,14-21).
São Lucas, como autor material do III evangelho, imbuído de muita honestidade intelectual, não se apresenta exigindo direitos autorais do seu trabalho, mas reconhece que é, entre outros, mais um servidor da Palavra. Contudo, a sua humildade nesse serviço não o isenta de compartilhar o caminho percorrido para a elaboração da Obra: “Após fazer um estudo cuidadoso”, sobretudo fazendo referência às suas fontes: “Os acontecimentos transmitidos pelas testemunhas oculares e ministros da Palavra”. Portanto, não estamos diante de um texto elaborado com recursos da inteligência artificial (IA) nem muito menos uma amálgama de elocubrações subjetivas que tentam interpretar acontecimentos do passado. A força do anúncio do Evangelho está na sua raiz testemunhal: “Vós sois testemunhas disso” (24,48).
Na segunda parte do evangelho de hoje, vemos o próprio Senhor revelando quem Ele é e qual a sua missão. Assim como São Lucas introduz o seu evangelho assegurando a solidez dos ensinamentos transmitidos (grego: asphaleian, confiabilidade), Jesus apresenta a sua missão enraizada na longa espera do Antigo Testamento que agora se realiza Nele. Lendo a profecia de Isaías (61,1-2), Jesus inaugura o tempo da realização das promessas veterotestamentárias. São Lucas une o Antigo ao Novo para evidenciar a superioridade desse último. Ainda que fosse costume de Jesus ir aos sábados à sinagoga (tradição antiga), a leitura (interpretação) que ele faz do texto é o Novo que irrompe, a ponto de provocar nos presentes grande atenção e admiração: “Todos tinham os olhos fixos Nele”. A admiração não se dá por conta do texto lido, mas a atenção é voltada para quem o lê, pois o seu ensinamento tem autoridade por causa de suas atitudes coerentes.
Naquele tempo, a liturgia sinagogal no sábado consistia na recitação de um salmo, o shemá, um trecho da Torá, uma passagem dos profetas, uma pregação sobre as leituras (direito de todo hebreu masculino adulto), uma bênção sacerdotal (cf. Nm 6,24-27).
O evangelista elabora a narração unindo duas passagens de Isaías na leitura proclamada por Jesus (cf. Is 61,1-2; 58,6) para enfatizar a superioridade da missão de Jesus que, mesmo em consonância com a profecia veterotestamentária, supera-a na sua realização. Só Jesus, a Palavra eterna que se encarnou, abre a mente e o coração para compreender as Escrituras. 
Jesus abrindo o livro”: (grego: anaptúksas, literalmente desenrolar) indica mais do que uma ação material; Jesus é aquele que revela o sentido profundo das Escrituras, assim como fará com os discípulos de Emaús (24,27.32.45). Sem o encontro com o Senhor, o fato de ter simplesmente a Bíblia não é suficiente. Muito significativo é o contexto da leitura que Jesus faz, isto é, na liturgia da comunidade, no dia do Senhor, na sinagoga. Portanto, para nós cristãos católicos o lugar por excelência da proclamação da Palavra é no momento da oração comunitária, sobretudo a Eucaristia: “A interpretação da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra atual e viva” (Bento XVI, VD 52).
O Espírito do Senhor está sobre mim”: São Lucas ao longo do seu evangelho apresenta Jesus sempre sob a ação do Espírito Santo: na sua concepção no seio Virginal de Maria (1,35), no batismo (3,21), nas tentações (4,1) e até o momento que promete aos seus discípulos o dom do mesmo Espírito como força que os confirmará na missão (24,49).
Anunciar a boa nova aos pobres”: este anúncio mais do que promessas futuras de bem-estar, superação de dificuldades, superação de carências, é a boa notícia que enche de esperança o coração do ser humano (o pobre), necessitado de Deus, dependente da sua misericórdia, que já tinha sido proclamada na ocasião do nascimento de Jesus (2,10): “Eis que vos anuncio (evangelizo-vos) uma grande alegria: Nasceu-vos um Salvador, que é o Cristo-Senhor (o ungido)”. Sem acolhermos essa boa notícia, deixamos de ser os pobres destinatários do evangelho e nos tornamos miseráveis, sem esperança.
Libertação aos cativos, recuperação da vista aos cegos, libertação dos oprimidos” são consequências concretas do evangelho acolhido e acreditado. São categorias que resumem a miséria humana na sua totalidade (cativos por causa do mal moral-espiritual; cegos, mal físico; oprimidos, mal social). Portanto, a boa notícia alcança o ser humano na sua totalidade. Entender os pobres apenas como categoria socioeconômica resultaria num reducionismo comprometedor invalidando a destinação universal do evangelho. Mesmo quando a palavra pobre se refere a uma categoria específica na Bíblia, não pode ser considerada fechada em si mesma, pois está sempre relacionada com outros aspectos da realidade. 
Proclamar o ano da graça do Senhor”: o texto de Isaías se conclui com a ameaça (um dia de vingança do nosso Deus), mas Jesus encerra a leitura com a proclamação do ano da graça que faz alusão ao ano jubilar dos judeus (cf. Lv 25,8s), realizado a cada 50 anos em vista do perdão das dívidas, da recuperação da liberdade. Agora anunciado por Jesus, o ano da graça inaugura o tempo da misericórdia e da redenção. 
Esta proclamação do Senhor neste ano no qual a Igreja celebra o Ano Santo, o Jubileu da Esperança, convida-nos a manter os nossos olhos fixos Nele, para acolhermos essa boa notícia de salvação.  
Ungidos, também nós, pelo Espírito Santo, revigorados pela força do sacramento da reconciliação que nos liberta da prisão do pecado, nos faz recuperar a vista e nos livra de todo jugo opressor, o nosso coração de fato se encherá de verdadeira esperança, pois acreditamos no amor de Deus que é indulgente e favorável.
 
 
 
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana