Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Algumas pessoas têm a impressão de que o Ano Litúrgico é um ciclo fechado cujo início é o Tempo do Advento e seu fim, a Solenidade de Cristo-Rei com a última semana do Tempo Comum. E, portanto, tal percurso não passaria de um suceder-se mecânico de ritos e celebrações na perspectiva de um monótono “eterno retorno”. Esta concepção superficial fere profundamente a essência da liturgia e, por conseguinte, compromete a própria compreensão da história da salvação, que não é nem um movimento de reciclagem por falta de conteúdo, nem muito menos repetição de fatos por falta de espírito criativo. O Ano Litúrgico, por sua vez, em seu caráter pedagógico, nos coloca na esteira da vivência de um Mistério que nunca se repete, nunca caduca, nunca se desatualiza. A dinâmica da liturgia, na verdade, nos proporciona a vivência pluridimensional deste Mistério, que é sempre atual, embora não seja novidade, mas que é inesgotável. Uma das características essenciais da liturgia é o seu caráter anaminético, isto é, a capacidade de fazer memória (memorial segundo a Tradição bíblica: zikaron, tornar presente).
Neste sentido, a celebração do Advento não é “de novo” um momento de preparação para que o Natal aconteça naquela noite, pois este acontecimento é único, não se repete; mas num impulso de retomada do seu significado, somos desafiados a avançar para a sua realização plena. O primeiro Natal engravidou o mundo e a humanidade de eternidade. E toda a criação geme ansiando por este momento (Rm 8,19). O Concílio Vaticano II, com muita lucidez, reitera que as festas e os tempos litúrgicos não são aniversários (latim: annus + versus ou vertere, que é traduzido por “voltar”, “regressar”, aquilo que retorna todo ano) dos fatos da vida histórica de Jesus, pois estes não se reproduzem mais, nem muito menos permaneceram no passado do qual só temos a ideia. Mas a liturgia evidencia, na ação ritual e em todos os seus sinais, a “presença in mysterio” das ações do Verbo Encarnado que são, portanto, acontecimentos salvíficos atuais e eficazes para quem os celebra (Sacrosanctum Concilium, n. 102).
A perícope deste I Domingo do Advento nos apresenta duas atitudes fundamentais para podermos sintonizar de modo adequado com este momento de graça: “Ficai atentos e orai a todo momento”. Utilizando uma linguagem apocalítica, que apesar de inspirar-se em circunstâncias históricas, como momentos de sofrimento, perseguição e desesperança (destruição de Jerusalém 70 d.C.), Lucas faz ressoar a palavra de Jesus, que transcendendo o seu simples aspecto conjuntural-histórico, proclama a certeza de que o projeto original de Deus está se realizando ao longo da história com abrangência e alcance universais: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas”. É o anúncio do julgamento de Deus: “Verão o Filho do Homem vindo numa nuvem com grande poder e glória”, que faz a verdade vencer: “Levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”, mas, ao mesmo tempo, manifesta as consequências das opções que fizermos na vida: “Os homens vão desmaiar de medo…” ou “ficar de pé diante do Filho do Homem”.
Contudo, apesar de renovarmos na liturgia a consciência e a convicção de que o Projeto de Deus está se realizando na história, e nada o impedirá, não podemos nos acomodar. Em contraposição às duas atitudes fundamentais (vigiar e orar), Jesus alerta para três grandes perigos: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis (grego: barethôsin, sobrecarregados, aprisionados) por causa da gula (grego: kraipale, atordoamento, ficar tonto), da embriaguez (grego: methe, excesso de vinho) e das preocupações (grego: merimna, inquietação temerosa) da vida”. Três atitudes (gula, embriaguez e preocupações) decorrentes do coração pesado (insensível) que impedem ficar de pé, vigiar e ler os acontecimentos.
O Advento não é tempo de preparar a festa de aniversário de Jesus, mas tempo de renovarmos o nosso compromisso de testemunhar que o seu Natal (fato histórico do passado) se prolonga na história até alcançar a sua plenitude na instauração definitiva do Reino de Deus. Portanto, é preciso estar atentos e vigilantes; eis o grande apelo deste início de Advento! Caso contrário, cairemos na tentação de distorcer a verdade, a beleza e a fecundidade deste tempo litúrgico com ações (criatividades artificiais) de pouca inteligência e conhecimento do espírito litúrgico desse momento. Não estamos nos preparando para na noite de Natal cantar: “Parabéns pra Jesus”, e aplaudir a entrada solene de um bolo com 2021 velas, contando com o sopro do Espírito Santo para apagá-las. Que o Advento seja, de fato, tempo pedagógico para exercitarmos a vigilância e a oração, atitudes permanentes para quem deseja participar do parto definitivo do Reino de Deus, a fim de que: “Este dia não caia sobre vós como uma armadilha”.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana