“Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Este é o tema escolhido pelo Papa Francisco para a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos deste ano, que acontecerá entre os dias 6 e 27 de outubro. Em entrevista à revista Bote Fé, da Edições CNBB, o bispo emérito do Xingu (PA), dom Erwin Kräutler, que é coordenador da Rede Eclesial Pan-Amazônica no Brasil (REPAM-Brasil), apresenta as principais reflexões que estão na pauta do Sínodo desde a convocação feita pelo Papa Francisco em 2017. Ele também comenta o trabalho desenvolvido no âmbito da REPAM-Brasil, organismo vinculado à Comissão Episcopal Especial para a Amazônia da CNBB, da qual também é um dos membros.
Dom Erwin também fala da preocupação por parte do governo brasileiro com o Sínodo. Para ele, quem deu maior publicidade ao Sínodo para a Amazônia foi o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, “com seu pavor de toda essa movimentação nas comunidades amazônicas afetar a ‘soberania’ nacional. Se nós bispos e peritos falamos na Aula Sinodal no Vaticano em exigências de necessidade básica dos povos na Amazônia, será que isso pode ser taxado de intromissão indébita na política do governo ou, pior, agressão à soberania nacional?”, questiona.
Confira a entrevista na íntegra:
A Assembleia do Sínodo dos Bispos conta com um processo de escutas nas realidades abordadas pelo tema proposto pelo papa. Neste Sínodo especial para a Amazônia o que foi possível escutar dos povos amazônicos, quais os principais desafios neste contexto dos novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral?
O método que já foi usado nos Sínodos sobre a Família e sobre os Jovens é a “Escuta” como primeira etapa. O papa Francisco insistiu que se ouvisse as bases. Não quis apenas uma análise de conjuntura elaborada por um cientista ou perito, um “Ver” a partir da cátedra de um professor que conhece a Amazônia. O Ver da preparação para o Sínodo é mais um Escutar o que falam os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, as comunidades do campo e da cidade. Para chegar a uma consulta abrangente, o Conselho Pré-sinodal convocado pelo papa elaborou uma introdução com quesitos a serem respondidos. O papa queria saber o que pensa o Povo de Deus sobre “as ameaças e dificuldades para a vida, o território e a cultura; sobre as aspirações e desafios dos povos amazônicos em relação à Igreja e ao mundo; que esperança oferece a presença da Igreja às comunidades amazônicas para a vida, o território e a cultura; como a comunidade cristã pode responder ante a situações de injustiça, pobreza, desigualdade, violências (droga, exploração sexual, discriminação dos povos indígenas, migrantes etc.) e de exclusão.”
Outra preocupação é que 70% das comunidades na Amazônia brasileira têm a graça de participar da celebração eucarística apenas três a quatro vezes por ano. A Eucaristia, em vez de ser “a fonte e o ápice de toda a vida cristã” (Concílio Vaticano II, Lumen Gentium 11) se torna um ato litúrgico de exceção, “coisa de padre”, quando ele aparece algumas poucas vezes ao ano. Por isso, o Conselho Pré-sinodal formulou uma pergunta específica: “Um dos grandes desafios pastorais da Amazônia é a impossibilidade de celebrar a Eucaristia com frequência e em todos os lugares. Como responder a essa situação?” Outra importante questão para o papa é o papel dos leigos, especialmente das mulheres. Por isso os questionamentos: Como reconhecer e valorizar o papel dos leigos nos diferentes âmbitos pastorais (nos campos catequéticos, litúrgicos e sociais)? A participação das mulheres em nossas comunidades é de suma importância. Como reconhecer e valorizar essa participação no horizonte dos novos caminhos?”
O que o Sínodo para a Amazônia sinaliza e pede à Igreja no Brasil como um todo?
Em 15 de outubro 2017 o papa convocou uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia. Não será realizada em um dos países que compõem a Amazônia, mas em Roma para, por um lado, dar uma ênfase especial no âmbito do mundo todo à realidade dessa macrorregião e, por outro, para ele mesmo poder participar integralmente do evento. Obviamente, em primeiro lugar, são chamadas todas as dioceses da Amazônia para detectar novos caminhos de Evangelização e engajar-se em favor de uma ecologia integral. Por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em 2013, no Rio de Janeiro, o papa Francisco chamou a Amazônia de “teste decisivo, banco de prova para a Igreja e a sociedade brasileiras”. A defesa da Amazônia na realidade não é apenas um teste decisivo para o Brasil, mas para a Pan-Amazônia e toda a humanidade.
Os novos caminhos exigem novas atitude e até conversão. A Igreja vai se “converter” como esperam os povos?
A “conversão” é um esforço permanente de toda a Igreja. “Ecclesia semper reformanda” é um ditame cunhado originalmente pela Reforma Protestante, mas posteriormente também usado pelos papas João Paulo II, Bento XVI e o atual papa Francisco. De fato, embora as grandes verdades de nossa fé sejam imutáveis há realidades que são perfeitamente modificáveis de acordo com as culturas dos diversos povos, a época em que se vive e ciências que abrem novos caminhos de compreensão. O Concílio Vaticano II não alterou dogmas, mas seguiu a orientação do papa São João XXIII que o convocou. João XXIII insistiu num “aggiornamento”, numa atualização da ação pastoral e evangelizadora aos novos tempos.
Por exemplo, não entendemos mais a Igreja Missionária no sentido do Concílio de Trento (1545 – 1563), mas baseamos nosso empenho em tantas frentes missionárias no Decreto “Ad gentes” que nos exige uma outra aproximação em nome do Evangelho aos povos e às pessoas respeitando as suas culturas e sua história.
A Santa Missa que hoje celebramos segundo Paulo VI fundamentalmente não se distingue da Santa Missa proposta pelo papa Pio V, mas a liturgia se adaptou a compreensão dos fiéis em nossos tempos e deve adaptar-se cada vez mais para tornar-se uma celebração sempre mais participativa. Será que se justifica que na Amazônia se celebre os Sacramentos do mesmo jeito como na Basílica de São Pedro? As culturas originárias dos diversos povos não devem ser levadas em conta?
Nesse contexto, conversão, “metanoia”, significa mudar de mentalidade a partir das culturas autóctones e não continuar a subjugá-las ou substituí-las por culturas estranhas. A Igreja nos seus primórdios se esmerou em respeitar idiomas, culturas e tradições dos diversos povos que aderiram ao “Caminho” (Cf. At 9,2; 22,4). Do mundo semítico passou para o mundo grego e daí para o mundo romano que até hoje, de certa forma, exerce sua predominância. Não se trata de abolir as verdades eternas, mas de cambiar a roupagem em que as apresentamos.
O senhor e dom Cláudio estão à frente desse trabalho da REPAM e já são bispos eméritos. O que representam para o senhor, para seu ministério, estes acontecimentos recentes, desde a fundação da Rede Eclesial Pan-Amazônica?
Somos, sim, bispos “eméritos”, mas isso não significa que penduramos definitivamente as chuteiras e viramos peças de museu. Por causa de nossa idade, fomos dispensados pelo papa de coordenar e presidir uma diocese. Assim, dispomos agora de mais tempo para servirmos a causas supra-diocesanas. Somos solicitados a assumir ministérios que um bispo diocesano dificilmente poderia assumir integralmente.
A REPAM foi criada em setembro de 2014 e o papa Francisco quer que seja uma rede que abranja todos os países que compõem a Amazônia. Dom Cláudio assim elucida a finalidade da REPAM: “A Igreja na Amazônia quer se juntar a uma rede para somar esforços, para encorajar uns aos outros e ter uma voz profética nos níveis internacionais mais importantes, quando a Amazônia e seus povos estão em questão”. Há em nível da CNBB a Comissão Episcopal para a Amazônia que se preocupa com a parte brasileira da Amazônia. A REPAM ultrapassa as fronteiras brasileiras e neste momento se preocupa primordialmente com o Sínodo. Já antes da convocação do Sínodo a REPAM prestou um grande serviço na divulgação da Encíclica “Laudato Sì” colaborando com dioceses e regionais no estudo deste documento tão importante que agora se torna base para deliberarmos sobre a segunda parte do objetivo do Sínodo, a “Ecologia Integral”.
Como avalia esta ofensiva do Governo brasileiro na tentativa de interferir na assembleia sinodal?
Todo o movimento nas comunidades cristãs na etapa do estudo e da consulta ficou quase despercebido fora da Amazônia e não parecia ser tema de grande interesse para a Igreja no Brasil além da Amazônia. Havia até gente que se perguntava: Para quê um Sínodo para uma região só? Essa falta de interesse de repente foi substituída por um alvoroço em nível nacional e internacional. O que aconteceu? Quem ajudou o Sínodo para a Amazônia se tornar assunto de primeira página de jornais e de manchetes nos noticiários dos diversos canais de televisão? Foi o excelentíssimo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) general Augusto Heleno com seu pavor de toda essa movimentação nas comunidades amazônicas afetar a “soberania“ nacional. Pondera ainda o ministro-chefe do GSI: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.
Por trás de toda essa preocupação militar existe uma visão tremendamente equivocada sobre a missão da Igreja. No Brasil já passamos um longo período em que membros da Igreja, defensores intransigentes dos direitos e da dignidade humanos foram vigiados e investigados. Não nos metemos em política partidária. Procuramos, sim, viver os compromissos que emergem do Evangelho. Não devemos ser ”sal da terra” (Mt 5,13), ”luz do mundo” (Mt 5,14), ”fermento na massa” (cfr. Mt 13,33; Lc 13,20-21)? Se estruturas e medidas governamentais são iníquas, perversas, desumanas, excludentes, não cabe a todos os fiéis e, por excelência, aos bispos exigir que sejam respeitados a dignidade e os direitos de quem foi criado à imagem e semelhança de Deus? A Igreja não legisla sobre políticas públicas, mas exige de cada governo que se esmere em implementar programas de saúde, educação, habitação, segurança, transporte, saneamento básico para os cidadãos e cidadãs do país.
O Sínodo é um acontecimento da e para a Igreja e abrange todas as dimensões de sua ação e de seu empenho. Ao lado da dimensão samaritana existe a dimensão profética que procura as causas da pobreza, da violência, da exclusão, das injustiças que atingem tão fortemente a Amazônia. Se nós bispos e peritos falamos na Aula Sinodal no Vaticano em exigências de necessidade básica dos povos na Amazônia, será que isso pode ser taxado de intromissão indébita na política do governo ou, pior, agressão à soberania nacional? Nós não vivemos a nossa fé em ambiente asséptico, mas no meio do mundo. São ”inimigos da Cruz de Cristo“ (Fil 3,18) aqueles que querem separar a fé da vida e confiná-la no recinto fechado do templo e de sua sacristia. A Constituição pastoral “Gaudium et Spes” do Vaticano II formula magistralmente qual é o papel da Igreja: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos e discípulas de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1,1).
E a instrumentalização da opinião pública, apontando os temas da ecologia integral como “pautas de esquerda”, como enxerga esta questão?
É de uma incrível ignorância, para não dizer uma estupidez alguém considerar os temas da Ecologia “pautas de esquerda”. Trata-se da defesa do meio ambiente sem o qual o gênero humano não sobrevive. Aí não há direita ou esquerda. Há, sim, uma responsabilidade que cabe a todos os homens e mulheres desse planeta. Deixo o papa Francisco falar na sua Encíclica “Laudato Si’”: “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós” (LS 14).