Céus abertos!


Iniciamos o longo Tempo Comum e a leitura continuada do evangelista São Marcos com o qual acompanharemos o “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v. 1). Saberemos quem é Jesus, o Cristo, conforme o modo de narrar do referido evangelista.


Do ponto de vista literário, o narrador consciente permite ao leitor saber que o “segredo messiânico” existe. Em certo sentido, “os céus se abrem” para os leitores, tornando-os mais sabedores a respeito de Jesus do que os discípulos e outros personagens da narrativa. Estes, ao contrário do leitor, só gradual e progressivamente tomam conhecimento de quem é Jesus.


Para o leitor, o conhecimento se dá desde o batismo, quando o Espírito desce sobre Jesus e a voz do Pai o identifica “meu Filho amado” (1, 10-11). Logo é conduzido pelo mesmo Espírito (v. 12). A narrativa vai revelando o segredo até desvendá-lo por completo aos discípulos.


A primeira parte é centralizada na vida pública (1,14-10,52). Jesus anuncia a proximidade do Reino ou a soberania de Deus. Convida ao arrependimento e a adesão pela fé ao seu Evangelho (1, 14-15). Ensina com autoridade. Realiza ações de poder, exorcizando e curando. Perdoa os pecados. As testemunhas dos fatos se perguntam de onde vem sua sabedoria e sua força miraculosa. Os discípulos também se perguntam pela identidade dele. No entanto, Jesus lhes impõe o silêncio.  


A segunda parte é o ministério de Jesus em Jerusalém, convergindo para Paixão e morte e o anúncio da ressurreição (11,1-16,8) muito breve, pois o trecho final, embora canônico, é acréscimo (vv. 9-20). Não há mais segredo messiânico. O próprio Jesus, através da parábola dos vinhateiros homicidas, discorre sobre a filiação e a morte: o Filho amado será rejeitado e morto, mas se tornará a pedra angular (12, 1-12). Perante o Sinédrio, declara ao Sumo Sacerdote que o interroga ser Ele o Messias e o Filho do Homem que virá exaltado (14, 61 s). Abandonado pelos discípulos, é reconhecido na cruz pelo centurião:  “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (15, 39). Por conseguinte, agora o segredo é explicitado.


Outro modo, ainda que indireto, de dizer o segredo é pelos adversários. Eles dizem a verdade messiânica pela rejeição e o sarcástico. Reconhecem ser Ele um justo sofredor: “Que farei de Jesus, que dizeis ser o rei dos judeus? –Crucifica-o! –Mas que mal ele fez? ” (15,12-14). Sabem que Ele só fez o bem, salvando os outros. Atestam: “Aos outros salvou, a si mesmo não pode salvar. O Messias, Rei de Israel…desça agora da cruz, para que vejamos e creiamos” (v. 31-32).


Então, o segredo messiânico é apenas um recurso literário? Absolutamente! Existe um motivo cuja origem remonta ao próprio ministério de Jesus enquanto serviço de nossa salvação. Longe desta perspectiva altruísta, a messianidade e a filiação divina poderiam suscitar expectativas oportunistas de triunfalismo e de carreirismo, como se vê quando os discípulos discutiram sobre quem seria o maior (9,34). Os milagres poderiam ser vistos como ações espetaculares e não expressões do Reino de Deus e de seu senhorio salvífico. Por isso, o segredo do Messias só se manifesta no sofrimento da Paixão até a morte de cruz e a glória da ressurreição vindoura. Logo, na Páscoa -morte e ressurreição- é quando ocorre a revelação de quem é Jesus, o Cristo.


A quem foi desvendado o segredo messiânico é lançada também a vocação ao seguimento: “Se alguém vir após mim, tome sua cruz e siga-me” (8,34); “aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor” (10,43). O discipulado é, portanto, o fruto da compreensão e da aceitação da verdade sobre Jesus, não mais ocultada. São Marcos ensina: sejamos não apenas leitores, mas discípulos conhecedores, aptos e prontos para seguir a Jesus, Mestre e Senhor.