Papa aos novos cardeais: colocar-se aos pés dos outros para servir


 


No Consistório Ordinário Público para a criação de 14 novos cardeais, o Papa exortou a não cair nos ciúmes, invejas e intrigas, mas a voltar o olhar, os recursos, as expectativas e o coração para o que conta: a missão para com os irmãos.


 


Cidade do Vaticano


O Papa Francisco presidiu, na tarde desta quinta-feira (28/06), na Basílica de São Pedro, no Vaticano, o Consistório Ordinário Público para a criação de catorze novos cardeais.


O Pontífice iniciou a sua homilia, com a seguinte passagem do Evangelho de Marcos: “Estavam a caminho, subindo para Jerusalém. Jesus ia na frente deles.”


“O início desta passagem paradigmática de Marcos sempre nos ajuda a ver como o Senhor cuida do seu povo com uma pedagogia incomparável. No caminho para Jerusalém, Jesus não Se esquece de preceder os seus.”


Francisco frisou que “Jerusalém representa a hora das grandes resoluções e decisões. Todos sabemos que, na vida, os momentos importantes e cruciais deixam falar o coração e manifestam as intenções e as tensões que vivem em nós”.


“Tais encruzilhadas da existência nos interpelam e fazem surgir questões e desejos nem sempre transparentes do coração humano; é o que nos mostra, com grande simplicidade e realismo, o texto do Evangelho que acabamos de ouvir.”


Não aos ciúmes, invejas e intrigas


“Em contraponto ao terceiro e mais duro anúncio da Paixão, o Evangelista não teme desvendar alguns segredos do coração dos discípulos: busca dos primeiros lugares, ciúmes, invejas, intrigas, ajustes e acordos; esta lógica não só desgasta e corrói a partir de dentro as relações entre eles, mas os fecha e envolve em discussões inúteis e de pouca importância.”


“Entretanto Jesus não Se detém nisso, mas continua adiante, os precede e diz-lhes vigorosamente: ‘Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo’. Com este comportamento, o Senhor procura centrar de novo o olhar e o coração de seus discípulos, não permitindo que discussões estéreis e autorreferenciais tenham espaço na comunidade.


Que adianta ganhar o mundo inteiro, se se fica corroído por dentro? Que adianta ganhar o mundo inteiro, se todos vivem prisioneiros de asfixiantes intrigas que secam e tornam estéril o coração e a missão? Nesta situação – como alguém observou –, poder-se-iam já vislumbrar as intrigas de palácio, mesmo nas cúrias eclesiásticas”, disse ainda o Papa.


A missão


“Não deve ser assim entre vós”: é a resposta do Senhor, que constitui primeiramente um convite e uma aposta para recuperar o que há de melhor nos discípulos e, assim, não se deixarem arruinar e se prender por lógicas mundanas que afastam o olhar daquilo que é importante. ‘Não deve ser assim entre vós’: é a voz do Senhor que salva a comunidade de se fixar demasiado em si mesma, em vez de dirigir o olhar, os recursos, as expectativas e o coração para o que conta, a missão.”


“Deste modo, Jesus nos ensina que a conversão, a transformação do coração e a reforma da Igreja são feitas, e sempre devem ser, em chave missionária, pois pressupõem que se deixe de olhar e cuidar dos interesses próprios para olhar e cuidar dos interesses do Pai.”


“A conversão dos nossos pecados, dos nossos egoísmos não é nem será jamais um fim em si mesma, mas visa principalmente crescer em fidelidade e disponibilidade para abraçar a missão; e isto de tal maneira que na hora da verdade, especialmente nos momentos difíceis dos nossos irmãos, estejamos claramente dispostos e disponíveis para acompanhar e acolher a todos e cada um e não nos transformemos em ótimos repelentes por termos vistas curtas ou, pior ainda, por estarmos pensando e discutindo entre nós quem será o mais importante”, disse ainda o Papa.


“ Quando nos esquecemos da missão, quando perdemos de vista o rosto concreto dos irmãos, a nossa vida fecha-se na busca dos próprios interesses e seguranças. ”


E, assim, começam a crescer o ressentimento, a tristeza e a aversão. Pouco a pouco diminui o espaço para os outros, para a comunidade eclesial, para os pobres, para escutar a voz do Senhor. Deste modo perde-se a alegria, e o coração acaba na aridez.”


“’Não deve ser assim entre vós – diz o Senhor – (…) e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos’. É a bem-aventurança e o magnificat que somos chamados a entoar todos os dias. É o convite que o Senhor nos faz, para não esquecermos que a autoridade na Igreja cresce com esta capacidade de promover a dignidade do outro, ungir o outro, para curar as suas feridas e a sua esperança tantas vezes ofendida.


É lembrar que estamos aqui porque fomos enviados para ‘anunciar a Boa-Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; para mandar em liberdade os oprimidos, para proclamar um ano favorável da parte do Senhor’.”


Colocar-se aos pés dos outros para servir a Cristo


Amados irmãos cardeais e novos cardeais! Estando nós na estrada para Jerusalém, o Senhor caminha à nossa frente para nos lembrar mais uma vez que a única autoridade crível é a que nasce do se colocar aos pés dos outros para servir a Cristo. É a que deriva de não esquecer que Jesus, antes de inclinar a cabeça na cruz, não teve medo de Se inclinar diante dos discípulos e lavar os seus pés.


Esta é a mais alta condecoração que podemos obter, a maior promoção que nos pode ser dada: servir Cristo no povo fiel de Deus, no faminto, no esquecido, no recluso, no doente, no toxicodependente, no abandonado, em pessoas concretas com as suas histórias e esperanças, com os seus anseios e decepções, com os seus sofrimentos e feridas. Só assim a autoridade do pastor terá o sabor do Evangelho e não será «como um bronze que soa ou um címbalo que retine» (1 Cor 13, 1).


Nenhum de nós deve se sentir ‘superior’ aos outros. Nenhum de nós deve olhar os outros de cima para baixo; só podemos olhar assim uma pessoa, quando a ajudamos a se levantar.


Testamento espiritual de São João XXIII


“Gostaria de recordar convosco uma parte do testamento espiritual de São João XXIII que, já adiantado no caminho, pôde dizer: «Nascido pobre, mas de gente honrada e humilde, sinto-me particularmente feliz por morrer pobre, tendo distribuído, segundo as várias exigências e circunstâncias da minha vida simples e modesta a serviço dos pobres e da Santa Igreja que me alimentou, tudo o que me chegou às mãos – em medida, aliás, muito limitada – durante os anos do meu sacerdócio e do meu episcopado.


Aparências de fartura encobriram, muitas vezes, espinhos ocultos de pobreza aflita que me impediram de dar mais do que eu gostaria. Agradeço a Deus por esta graça da pobreza, de que fiz voto na minha juventude, pobreza de espírito, como Padre do Sagrado Coração, e pobreza real; e por me sustentar para nunca pedir nada, nem lugares, nem dinheiro, nem favores, nunca, nem para mim nem para os meus parentes ou amigos» (29 de junho de 1954).”