Cáritas acompanha saga de migrantes venezuelanos que cruzam a fronteira do Brasil


 


 


Cáritas acompanha saga de migrantes venezuelanos que cruzam a fronteira do Brasil



Família Martines Gomes ao cruzar a fronteira Venezuela/Brasil seguem a pé para Boa Vista (RR). Foto: Osnilda Lima/Cáritas


Debaixo de uma árvore lá estavam os quatro. Era por voltas das 15 horas. Sob o sol forte, com o agravante de ser próxima à Linha do Equador, região que apresenta clima com temperaturas maior em relação a outras. Eles já haviam caminhado aproximadamente 30 quilômetros, saíram de Pacaraima (RR) na tarde do dia anterior. Passaram à noite às margens da BR 174 que liga à cidade de Boa Vista (RR).


A família Martines Gomes tinha percorrido cerca de 690 quilômetros desde San Félix, na Venezuela, até chegar ao Brasil. “Tenemos mucha hambre y sed”, disse Adriana Gomez, 18 anos, ao nos contar que estavam sem forças para prosseguir a caminhada, pois sentiam muita fome e sede, não tinham comido nada naquele dia. Alguém no caminho doou alguns biscoitos, mas estavam reservando para o pequeno José Armando, 3 anos, que no colo da mãe Eglis, 36, tentava sugar o leite do peito, mas aparentava sem força e Eglis disse que não tinha mais leite. Edson, 15 anos, sentado na raiz da árvore, não pronunciou uma palavra. Olhar triste, distante. A intenção da família era chegar a Boa Vista. Pela frente, tinham ainda, aproximadamente, 211 quilômetros.


Assim é a saga de boa parte dos migrantes venezuelanos que cruzam a fronteira entre as cidades venezuelana de Santa Elena de Uairén para a brasileira Pacaraima. Eles fugem da miséria deixada pela crise social, política e econômica de sua terra.  Segundo o ACNUR, Agência da ONU para Refugiados e a OIM, a Agência da ONU para as Migrações, o número de refugiados e de migrantes oriundos da Venezuela já atingiu a soma de três milhões de pessoas no mundo todo. Estima-se que cinco mil pessoas arrumem suas malas e saiam do país todos os dias, fugindo do colapso econômico e da crise humanitária que assola a nação.


Países da América Central e do Caribe registram aumento na chegada de refugiados e migrantes venezuelanos. O Panamá, por exemplo, abriga 94 mil venezuelanos atualmente. Mas de acordo com o ACNUR, países da América do Sul acolhem o maior número. A Colômbia abriga mais de um milhão de migrantes e refugiados venezuelanos. Em seguida vem o Peru, com mais de meio milhão, o Equador com mais de 220 mil, a Argentina com 130 mil, o Chile com mais de 100 mil e o Brasil com 85 mil.


No Brasil, entre as cidades de Pacaraima e Boa Vista, foram construídos 13 abrigos com a capacidade para 6.070 pessoas. Calcula-se que cerca de dois mil venezuelanos estão vivendo em situação de rua em Boa Vista.  Os desafios enfrentados nesta crise humanitária incluem a falta de abrigamento, acesso a serviços básicos e desconhecimento das leis brasileiras. Os venezuelanos chegam com pouca informação sobre o Brasil. Os desafios de sobrevivência são imensos, a maioria não tem dinheiro para moradia e acabam em situação de rua, famílias inteiras. Há outros agravantes, como a integração e o enfrentamento à xenofobia em um contexto de tensões e polarização política; a qualificação desperdiçada em empregos informais com baixa remuneração; a barreira da revalidação de diploma; a falta de acesso ao aprendizado da língua; a exploração de trabalhos em fazendas, minas de carvão e indústria madeireira.


A migração no mundo – De acordo com o papa Francisco, em sua Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2018, o encontro com o outro não para no acolher, mas envolve mais três ações: proteger, promover e integrar. “No verdadeiro encontro com os outros, seremos capazes de reconhecer Jesus Cristo que pede para ser recebido, protegido, promovido e integrado? O encontro com Cristo é a fonte da salvação, uma salvação que deve ser anunciada e trazida a todos”, afirmou o santo padre. “Repetidas vezes expresso especial preocupação pela triste situação de tantos migrantes e refugiados que fogem das guerras, das perseguições, dos desastres naturais e da pobreza. Trata-se, sem dúvida, dum ‘sinal dos tempos’’’, afirma Francisco.


Segundo o ACNUR e Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (UN DESA – 2017), ao redor do mundo, 173 milhões de refugiados são deslocados por guerras e conflitos, mais que na II Guerra Mundial. E, para cada grupo de 113 pessoas no planeta, 1 é solicitante de refúgio e 4 são migrantes internacionais ou deslocados internos. 12% da população mundial é constituída de migrantes internos, deslocados, desplazados. No mundo, 13% do total de migrantes são latino-americanos. Na América Latina há 57,5 milhões de migrantes internacionais, já os refugiados são 804 mil. Os deslocamentos internos no continente Americano chegam a 5,4 milhões. 6,1% da população da América Latina é constituída por migrantes internacionais.


Resposta humanitária – Como estratégia de resposta humanitária, o governo brasileiro iniciou em 2018 o processo de interiorização da qual o ACNUR e OIM e entidades da Igreja Católica, demais Igrejas e sociedade civil se somam à iniciativa no processo de integração. Ao todo, 3.077 venezuelanos foram para outras cidades brasileiras. Todos os que viajam com a ajuda do governo e da ONU aceitam voluntariamente participar do processo, são instruídos sobre as cidades de destino, vacinados e devidamente regularizados em suas documentações, inclusive com carteira de trabalho e CPF.


Para garantir “acolhida, proteção, promoção e integração”, a Cáritas Brasileira criou Programa Pana com o apoio da Cáritas Suíça e o do Departamento de Estado dos Estados Unidos. O Pana visa contribuir com a assistência humanitária e a integração de migrantes e refugiados, em especial os venezuelanos, que estão em situação de vulnerabilidade social e que buscam reconstruir a vida no Brasil.


Pana é uma palavra popular na Venezuela que significa amigo/a, parceiro/a, pessoa próxima. E, nesse sentido, a inciativa tem como objetivo, ao longo de um ano, favorecer mais de 3.500 pessoas, sendo, pelo menos, 1.224 delas migrantes venezuelanas, a partir da integração em sete capitais do país: Boa Vista (RR), Brasília (DF), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Porto Velho (RO), Recife (PE) e São Paulo (SP). O programa oferece uma estrutura de acolhimento que passa pela concessão de aluguéis sociais, itens de primeira necessidade — alimentos, roupas, medicamentos, kits de higiene —, bem como apoio jurídico e psicossocial. O Pana conta com parceiros locais, em cada capital, que contribuem para a integração dos migrantes.


Ainda em sua Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2018 o papa Francisco também ressaltou que: “Cada forasteiro que bate à nossa porta é ocasião de encontro com Jesus Cristo, que se identifica com o forasteiro acolhido ou rejeitado de cada época. O Senhor confia ao amor materno da Igreja cada ser humano forçado a deixar a sua pátria à procura dum futuro melhor. […] Trata-se de uma grande responsabilidade que a Igreja deseja partilhar com todos os crentes e os homens e mulheres de boa vontade, que são chamados a dar resposta aos numerosos desafios colocados pelas migrações contemporâneas com generosidade, prontidão, sabedoria e clarividência, cada qual segundo as suas possibilidades”.


O ACNUR reforça que o Brasil deve manter as fronteiras abertas, garantindo o acesso ao pedido de refúgio, a identificacao das necessidades de proteção especialmente às pessoas com perfis vulneráveis como crianças, mulheres e idosos.  Para a OIM, embora as migrações sejam uma característica natural da humanidade e tenham gerado avanços importantes no desenvolvimento, o foco na segurança dos países receptores, a falta de oportunidades nos países de origem geram uma das maiores crises humanitárias migratórias da história. De acordo com a Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia, Márcia Maria de Oliveira, há alguns paradoxos na questão migratória, “pois permanece a garantia do direito de migrar, contudo as sociedades negam esse direito. A mesma sociedade que produz os meios de expulsão está produzindo o rechaço e a xenofobia”.


Márcia lembra o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no livro “Tempos líquidos” em que afirma de um lado crescer as economias mundiais e o avanço das tecnologias encurtarem o tempo e as distâncias, de outro lado “cada vez mais, os refugiados se veem sob fogo cruzado, mais exatamente, numa encruzilhada, expulsos à força ou afugentados de seus países nativos, mas sua entrada é recusada em todos os outros”. Ainda segundo Bauman, “as migrações e os refugiados representam um sintoma das desigualdades sociais, das injustiças econômicas, dos processos de exclusão, das guerras, das crises políticas e da escandalosa concentração da economia mundial nas mãos de uns poucos grupos econômicos”. E assim os migrantes são obrigados a movimentar-se, nem sempre por opção.


Os Martines Gomes, que estavam a caminho, na BR 174, conseguiram carona e chegaram até Boa Vista, na tarde daquele mesmo dia. Juntaram-se aos demais 12 membros da família que estavam vivendo em uma casa alugada de três cômodos. Havia grande preocupação, pois só uma pessoa da família estava com empregada. O aluguel estava atrasado e o dinheiro do mês não ia dar para pagar, já tinham recebido aviso que, se não pagassem, seriam despejados.


#Eumigrante – Migrar é um direito humano universal! Migrar diz respeito à mobilidade espacial das pessoas, ou seja, trocar de casa, de cidade, de região, de estado ou país. Esse processo ocorre desde o início da história da humanidade. Uns migram por escolhas, outros são forçados a migrar.  O Brasil é formado por movimentos migratórios já com os povos originários, depois, com a chegada dos colonizadores, e, consequentemente com as pessoas que vieram escravizadas. A Pátria, não obstante a investida política contrária, continua acolhendo gente de diversos países que chega em busca de melhores condições de vida. Partindo dessa reflexão, a pedido da Cáritas Brasileira, o grupo da Signis Brasil Jovem criou a campanha #EuMigrante para mostrar a realidade migratória, o drama vivido pelos migrantes venezuelanos que chegam ao Brasil. A campanha quer, também, sinalizar caminhos para ajudá-los no processo de acolhida e integração.


Outras informações, acesse: eumigrante.org


Por Osnilda Lima – Cáritas Brasileira