Cardeal José Tolentino De Mendonça
Arquivista e Bibliotecário da S.R.C.
O Arquivo Vaticano tem uma história secular, fundado aproximadamente no ano de 1611 pelo Papa Paulo V, que separou o acervo de arquivística do acervo de livros da Biblioteca Vaticana. Na época era uma tendência nas sociedades estatais europeias, nas quais multiplicavam-se os arquivos “secretos”, ou seja privados, a disposição do soberano. Mas, assim como aconteceu para Biblioteca, refundada no período humanista por Nicolau V, o Arquivo Vaticano é apenas o segmento “moderno” de uma história mais longa, de quase dois mil anos, que começa com a história da Igreja, a segue e a acompanha em toda a caminhada praticamente das origens apostólicas até os nossos dias. No imenso patrimônio documentário acumulado nos séculos reflete-se verdadeiramente o “transitus Domini”, o caminho do Senhor Jesus na história dos homens por meio das vicissitudes da comunidade dos que acreditam n’Ele. Acontecimentos que inevitavelmente refletem luzes e sombras das realidades humanas, mas principalmente indicam o esforço de uma constante fidelidade, muitas vezes manifestada na santidade e no martírio.
Em 1881, Leão XIII teve a extraordinária coragem e a profunda previdência de abrir progressivamente aos estudiosos de todo o mundo a consulta dos documentos reunidos no Arquivo Vaticano. Realmente foi uma decisão de muita coragem e visão, superando as não poucas resistências internas. O Papa rompeu o clima de assédio no qual os acontecimentos da história e da cultura tinham deixado a Igreja e Santa Sé confinadas. E o fez com um gesto que hoje nos parece de confiança na inteligência e na retidão humana. No final do chamado “Século da História”, o Papa afirmou firmemente, na célebre Carta Saepenumero considerantes (18 de agosto de 1883), a convicção de que não era preciso ter medo da pesquisa, que não se devia temer a verdade nem ousar dizer falsidade. Desse modo a sabedoria ciceroniana conjugava-se à certeza evangélica de que a Verdade nos fará livres. A história “moderna” do Arquivo Vaticano nasce a partir desse ponto. Poucas décadas depois, o venerável e precioso depósito de papeladas, que tinha servido o Papa e a Cúria no governo da Igreja, mas também alimentado com cópias e transcrições as maiores obras históricas, de Cesare Baronio aos Monumenta Germaniae historica, tornou-se também um importante centro de estudos e de pesquisas ao qual recorreram e continuam a recorrer institutos históricos e pesquisadores de todo o mundo, sem preclusões de fé, nacionalidade ou culturas.
De “secreto” a “apostólico”
A decisão do Papa Francisco de mudar, na denominação do Arquivo, o adjetivo “secreto” em “apostólico” é em total continuidade com a decisão de Leão XIII e dos seus sucessores. A conotação fosca e opaca que acompanha na sensibilidade e no imaginário o termo “secreto” tornava este passo necessário, pois o valor originário de “secreto” desapareceu, que seria simplesmente “privado” (“secretum” de “secernere”, portanto “reservado”, ou seja à disposição do soberano e do seu governo). Entretando o termo “apostólico” é historicamente atestado desde o século XVII, século do nascimento do moderno Arquivo Vaticano. O termo concorre com frequência com o adjetivo que mais tarde historicamente prevaleceu e de algum modo exprime o mesmo conceito , ou mesmo o eleva e o fortalece. O Arquivo Vaticano é o Arquivo do Papa, da sua Cúria; portanto é plena e verdadeiramente “apostólico”, necessário e indispensável ao sucessor do apóstolo Pedro no seu serviço à Igreja universal. E este Arquivo profundamente “católico”, porque nele se reflete a vida da Igreja universal e do mundo inteiro, é compartilhado, sem temor, com os estudiosos de todo o mundo, com um gesto de confiança e de abertura que é a apologia mais correta e convincente da nossa fé.
Arquivo e Biblioteca com o mesmo adjetivo
A escolha do Papa Francisco tem uma outra significativa consequência positiva. A partir de agora o Arquivo e a Biblioteca têm o mesmo adjetivo que as une, Apostólica. Ambas instituições são “apostólicas”, no sentido que está no coração da missão da Igreja anunciar ao mundo a salvação de Jesus Cristo. Arquivo e Biblioteca não são uma jóia e um luxo do passado, mas são um recurso para o futuro, para compreender e interpretar a história dos homens, da qual são um espelho incomparável e fiel. Como disse Papa Francisco por ocasião da visita ao Arquivo em 4 de dezembro de 2018, o Arquivo não é apenas um lugar para conservar o passado, mas uma oportunidade para frequentar o futuro. Portanto o Motu Proprio é um ato de fidelidade ao Evangelho e, ao mesmo tempo, à história e disso devemos ser gratos ao Papa Francisco.
(Fonte: L’Osservatore Romano)