A perícope evangélica deste domingo está estruturada em dois momentos, contudo, intimamente relacionados: a pesca milagrosa (21,1-14) e o diálogo de Jesus com Simão Pedro (21,15-19). O evangelho de S. João já tinha relatado duas cenas de aparições do Ressuscitado aos discípulos (20,19-29), por isso faz questão de dizer que agora é a terceira vez (21,14). Porém, a finalidade da presente narração vai além de uma descrição de mais uma aparição; na verdade, como epílogo, retoma o fio condutor de todo o IV Evangelho, que parte do chamado dos primeiros discípulos (1,37.40.44.46), os quais vendo os sinais que Jesus realizou, acreditaram Nele e chega ao seu ponto mais alto no mandato missionário após a ressurreição do Senhor (20,21).
Na primeira parte da perícope, o evangelista retoma temas fundamentais relacionados à missão. A cena é situada às margens do mar de Tiberíades, na Galileia, onde tudo começou. Simão Pedro toma a iniciativa de ir pescar e os demais decidem ir com ele. Tudo confluía para um bom êxito: 4 pescadores experientes no grupo (de 7), possuíam barca e redes (recursos materiais), era noite (momento mais propício para a atividade). Porém, “naquela noite nada pescaram”. Desde os primórdios do Cristianismo o simbolismo da barca e da pesca serve para representar a Igreja e a sua missão. Do ponto de vista da eficiência humana não estava faltando nada, porém nada pescaram. Eis um alertar permanente para a Igreja quando passa pela tentação de pensar que a sua missão depende unicamente de recursos materiais e humanos, de estratégias de marketing ou dos mais avançados instrumentos da tecnologia. Ainda que se possa usufruir com racionalidade e equilíbrio desses recursos, eles jamais garantirão o êxito da missão.
“Então Jesus disse: ‘Lançai a rede à direita da barca, e achareis”. A missão se fundamenta na obediência à palavra de Jesus que convida a fazer mudanças profundas, mudar de rumo (converter-se). Este é o desafio que perpassa todo o evangelho de S. João, a começar nas Bodas de Caná: “Fazei o que ele vos disser” (2,5); obediência enraizada na fé, isto é, na decisão incondicional à Palavra como fez o centurião romano ao ouvir a voz de Jesus: “Vai, o teu filho vive’. O Homem acreditou na palavra de Jesus” (4,50). Mas a fé, que se expressa na obediência (escuta-adesão à Palavra), só é possível para quem ama: “Se alguém me ama, guardará minha palavra” (14,23). Significativo o fato de ter sido o Discípulo Amado o primeiro a reconhecer: “É o Senhor”; o amor sempre chega primeiro (20,4). Contudo, o reconhecimento de que Jesus estava ali confirma a verdade do seu amor, pois Ele mesmo prometera permanecer com os seus discípulos porque os amava.
Obedecer-crer-amar é o caminho para permanecer com Ele e Ele conosco, e obter o resultado: “Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim não podeis fazer” (15,5). A pesca é a realização da promessa de Jesus: produzir muitos frutos. O simbolismo numérico de totalidade (7 discípulos e 153 peixes) indica a universalidade da missão da Igreja, cujas redes jamais se rasgam por causa da fidelidade do seu Senhor.
A reação de Simão Pedro quando ouviu que era o Senhor: “vestiu sua roupa, pois estava nu, e atirou-se ao mar… Subiu (ao barco) e arrastou a rede para a terra”, se reveste de simbolismo na perspectiva joanina, e serve de preparação para a próxima cena (diálogo de Simão Pedro e Jesus), quando Jesus reabilita Simão Pedro para a missão e o confirma no caminho da obediência-fé-amor ao seu mestre, cuja máxima prova será dar a vida por Ele.
“Vestiu sua roupa” (grego: ton ependúten diezósato, literalmente: a veste externa amarrou à cintura). Temos um paralelo semântico entre essa ação de Pedro e o gesto de Jesus na última ceia quando se cinge com a toalha (13,4); ao vestir-se, Pedro se prepara para receber do Mestre a missão de fazer como Ele fez, o que no momento da ceia Pedro não entendeu, mas segundo a palavra de Jesus: “Mais tarde compreenderás” (13,7); reveste-se para o serviço do rebanho do seu mestre e senhor.
“Atirou-se ao mar”: O pescador agora se converte por um momento em peixe, que deve ser pescado, mais uma vez atraído pelo Divino pescador a fim de que seja capaz de se tornar pescador de homens, como tudo começou. Mergulha para esconder-se? Parece que não; pois não se afasta, mas vai ao encontro do Senhor que está de pé, à beira do mar; não é mais Pedro que afunda por falta de fé, mas um discípulo desejoso de realizar o que prometeu: “Darei a minha vida por ti” (13,37-38).
“Subiu ao barco” (grego: anebe, subir), no texto grego não se encontra nenhum complemento (ao barco); o verbo está de forma absoluta: subiu. Com isso o evangelista antecipa a nova situação de Pedro, que reconhece o seu pecado (rejeitando o lava-pés, negando o mestre, fugindo da cruz), mas que agora, no encontro com o Ressuscitado, faz experiência de morte-ressurreição (joga-se no mar e sobe); no Novo Testamento o verbo subir também tem significado de ressuscitar.
Unindo as duas cenas, temos o convite de Jesus para a ceia, Ele mesmo a prepara: “Logo que pisaram a terra, viram brasas acesas, com peixe em cima, e pão”. Jesus é o Bom pastor que prepara a mesa para os seus convivas. Se a primeira cena, como vimos, o evangelista apresenta a Igreja e a sua missão (comunidade obediente), agora evidencia a condição fundamental para realizar essa missão: amar o Senhor acima de tudo, e mais do que todos. As perguntas dirigidas a S. Pedro (e à Igreja) traçam um caminho realista que nos faz reconhecer que ainda não amamos o Senhor, pois quando Ele nos pergunta: “Tu me amas?” (grego: agapaw amor de quem dá a vida), a nossa resposta honesta se assemelha àquela de Pedro (grego: filew amizade, querer bem), que tem consciência de não ter dado ainda a maior prova de amor (ágape), isto é, morrer pelo amigo (15,13).
“Apascenta as minhas ovelhas” ainda que nosso amor (filia) esteja em processo de amadurecimento, Ele não deixa de acreditar que poderemos amá-lo (ágape) e, por isso, nos quer perto de si, realizando a missão que nos confia por puro e gratuito amor.
“Pedro entristeceu-se, porque Jesus perguntou três vezes se ele o amava”. Seguindo mais de perto o texto grego (eipen autw to triton: “disse-lhe a terceira vez”), a tristeza profunda de Pedro não se dá porque Jesus pergunta três vezes se ele o ama, mas porque “na” terceira vez Jesus muda a pergunta (de agapaw para filew). Jesus reconhece a verdade das duas primeiras respostas de Pedro (filew; “te quero bem”) e o confirma agora Ele mesmo, perguntando: “Tu me queres bem?” (na terceira vez). Ouvir de Jesus essa verdade o consternou, mas não podia negar que era essa a verdade. Contudo, Jesus não muda: “Apascenta as minhas ovelhas”. Se o nosso “amor” está em processo, o de Jesus chegou até os extremos (13,1), é perfeito por isso não desiste de nos fazer o convite: “Segue-me”. A celebração da Páscoa nos favorece a experiência do encontro com o Senhor que nos ama, para dar passos no nosso amor a Ele, vivendo a missão que nos confiou, cuidar das suas ovelhas, amando-as como Ele as ama.
